domingo, 9 de março de 2014

Educação Formal ou Informal?

Via Sociedade Racionalista: Texto Original

É provável que você tenha ouvido comentários como “A educação formal mata a criatividade” ou “As grandes mentes não tiveram educação formal“. É possível ainda que você tenha sido convencido sobre a verdade dessas afirmações e as tenha propagado por aí. Aqui pretendo mostrar o quão equivocado é este pensamento e como sua propagação é perniciosa.
Há tantos problemas com esse modo de pensar que é difícil decidir por onde começar a crítica. O primeiro grande erro é pensar que alguém se forma por conta própria, sem qualquer tipo de treinamento. Mesmo os aclamados autodidatas recebem alguma forma de treinamento em alguma fase da vida para aprimorar habilidades; caso contrário não avançam. O segundo problema, e talvez mais perverso, é o alinhamento com o mito do gênio. Muitas pessoas acham que as “grandes mentes” não tiveram educação formal e atribuem à educação formal a culpa pela falta de novos gênios. É fato que nossa educação deixa a desejar em muitos aspectos, especialmente no Brasil. Contudo, façamos uma análise compromissada sobre o assunto.
É correto afirmar que a educação é homogênea entre os estados da federação? Não, definitivamente não é. As diferenças são ainda mais acentuadas se olharmos para o mundo além de nossas fronteiras. Isso é motivo suficiente para eliminar a ideia de que a educação institucionalizada é um problema. Não entendeu? O caso é que qualquer afirmativa do tipo “a escola gera grilhões para a criatividade” é uma generalização partindo de casos particulares e, portanto, uma inferência indutiva. Basta a observação de uma única escola que ofereça um ensino de qualidade e estimule a criatividade para falsear a inferência.

Há, em muitas instituições, o processo de limitação da criatividade. Mesmo assim, estas instituições conseguem cumprir um papel importantíssimo na formação de um indivíduo. O mito do gênio consiste em atribuir uma inteligência incomum a uma figura que se constrói sem passar pelo “processo padrão”. Por processo padrão, quero dizer cumprir as etapas da educação formal (i.e. escola, universidade, etc.). Não conheço muitos deste tipo e na história da ciência não há sequer um bom exemplo que justifique o mito. As formalidades da educação institucionalizada ou ensino formal são fundamentais para a construção de um indivíduo crítico. Por vezes me pego discutindo aspectos da biologia com pessoas que demonstram não ter o mínimo de entendimento requerido para entrar na discussão. Imagine explicar o conceito de transferência horizontal de genes para uma pessoa que não entende muito bem nem o que é gene. O que preocupa é que não são crianças ou pessoas sem instrução, são pessoas que, por vezes, referem ter cursado graduação em biologia. Não se pode culpar exclusivamente o ensino formal por isso. Essas pessoas não leem a literatura adequada e não é por falta de acesso, mas por acreditarem que podem acessar a mesma informação em sites, blogs ou, quem sabe, no boteco.

Há muita gente por aí engajada em “debater cientificamente” questões que não entendem muito bem. Se você quer debater física quântica, não espere ser levado a sério por usar a Superinteressante como referência para o debate. Há uma ideia viral disseminada pela internet que tem convencido adolescentes curiosos de que tudo o que você precisa saber para ter uma ideia revolucionária está em blogs ou comentários no Facebook. De onde vem essa distorção? Infortunadamente, ela encontra eco na academia entre alguns desgostosos com a atual estrutura político-científica, como se vê no comentário do cientista político Alexandre Barros.

“Criou-se um clube de amigos que publicam em revistas nas quais, não raro, o intervalo entre o término de uma pesquisa e sua publicação pode ser de até 4 anos. Só essas revistas são reconhecidas. Outras mídias (jornais, revistas, TV) de nada valem, ainda que possam ser lidas por milhões de pessoas. Isso em tempos de Internet. (Alexandre Barros, 2010)”

Para aqueles que compraram a ideia devo alertar que foram enganados. Você não irá revolucionar a ciência, destronar Einstein, derrubar uma teoria consolidada ou coisa do tipo lendo textos no Facebook, em sites de revistas ou grupos curiosos ou vídeos no You Tube. Se você quer revolucionar a física ou a biologia você terá que ler revistas especializadas na área de interesse. Terá de aprender a linguagem e termos técnicos. Terá de ficar entediado com a leitura de alguns trabalhos especializados e extremamente chatos que, por vezes, revelam-se inúteis. Há muitas boas revistas com a política de acesso livre (i. e., que podem ser acessadas gratuitamente no seu computador pessoal) como o jornal PLoS ONE ou as centenas de revistas indexadas na base de dados SciELO.

Há quem mencione que os filósofos da antiguidade não tinham esse tal de ensino formal e até hoje são considerados os mais sábios. Resguardados os padrões da época, eles tinham o que hoje chamamos educação formal. O que inclui academias e a formação de outros indivíduos letrados. Reis e imperadores mandavam chamar grandes filósofos para lhes ensinar filosofia e questões que pudessem ter alguma serventia política. Então, não propague a falácia de que grandes mentes não tinham educação formal.

Recentemente li a crítica de Alexandre Barros que me pareceu um desserviço à educação brasileira. Entre os aspectos da crítica, estão 1. a burocracia do serviço público; 2. o produtivismo e a ideia de que ninguém lê artigos tupiniquins; 3. a exigência de titulação (mestrado ou doutorado) para assumir o cargo de professor numa universidade brasileira; 4. a defesa de que pessoas sem a formação acadêmica strictu sensu têm mais conhecimento quando comparado aquelas com formação strictu sensu; 5. a defesa de que isso reflete a falta de inovação e de laureados com o prêmio Nobel no Brasil.

É fato que a burocracia é absurda em todos os setores do serviço público no Brasil e isso, naturalmente, atrapalha. No entanto, há uma perigosa generalização na forma como o cientista político trata a ciência brasileira. Há professores brasileiros que são referência mundial em seu campo de trabalho e tenho a alegria de dividir laboratório ou cruzar com eles todos os dias nos corredores da universidade à qual estou vinculado. Há muitos professores com o mau hábito do produtivismo, mas não é fato que seus trabalhos não são lidos. O processo de produção de um artigo não é um mister puramente teórico, como ele faz parecer. A produção de artigos exige muitos testes que contribuem para a formação de jovens cientistas brasileiros. Portanto, não é verdade sua frase que diz “no Brasil quem sabe faz e quem não sabe ensina”. Ora, um artigo não surge do nada, há muita experimentação no curso da produção à publicação e isso exige o saber fazer, em termos práticos e não apenas teóricos.

Também não é verdade que no Brasil um professor sem doutorado não tem vez na universidade. Esta análise é fruto do desconhecimento sobre a realidade das universidades pequenas ou do balizamento pelos grandes centros de pesquisa, como USP, UNIFESP, UFMG, UFRJ, etc. Universidades das regiões Norte e Nordeste têm professores que possuem apenas graduação ou, quando muito, especialização. Naturalmente, exige-se que estes se qualifiquem e isto está longe de ser ruim. Mesmo assim, a tal exigência não vem em detrimento de seus empregos. Pessoas como Bill Gates ou Steve Jobs encontrariam lugar em qualquer grande universidade no Brasil e provavelmente receberiam a honraria de Doutor honoris causa, que, infelizmente, é dada há muito Zé-ninguém neste país. Por fim, não é bem verdade que o Brasil não tem um Nobel em nenhum campo. Há um brasileiro legítimo que foi Nobel de medicina por uma descoberta relacionada ao funcionamento do sistema imune. Chama-se Peter Medawar, nascido no Rio de Janeiro. O caso é que ele perdeu a cidadania após ter recusado servir o exército. Após isso ele pediu cidadania britânica, o que ninguém negaria a um ex-aluno de Oxford e pupilo de Sir Karl Popper.

A propósito, ser laureado com o Nobel é indubitavelmente uma honraria, mas está longe de ser “o critério” de qualidade para a ciência. De fato, há muito mais questões políticas que científicas envolvidas na escolha dos laureados. Basta lembrar de casos como os de César Lattes ou Carlos Chagas. Dizer que estes não foram merecedores da premiação seria uma injustiça desmedida e, no entanto, nenhum dos dois jamais recebeu o prêmio.

A mensagem que espero ter deixado clara aqui é: não compre o discurso mentiroso de que a universidade vai castrar sua criatividade. Ela não é uma instituição fantástica que vai satisfazer todos os seus sonhos, mas bem vindo à vida real. Fazer ciência não é fácil e não se faz revolução alguma sentado no sofá (nem na ciência nem na estrutura política).

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