sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Parece, mas não é


parece, mas não é (Foto: Indio San)[via: Galileu]


Como a física quântica é utilizada para defender ideias místicas em livros de auto-ajuda que nada têm a ver com a ciência

[Nota: Este artigo encontra-se, como o original, em português na norma brasileira]

Em artigo na revista Harper’s em 1929, o físico Percy Williams Bridgman tentava explicar a física quântica, mas advertia que ela seria desfigurada assim que se tornasse mais popular. “Espíritos dos mortos lá viverão; Deus habitará suas sombras; o princípio da energia vital será sediado ali; e será o meio de propagação da telepatia.”

Não demorou: com a publicação de O Tao da Física, em 1975, o físico austríaco Fritjof Capra abriu a temida caixa de Pandora e, em pouco tempo, uma das vertentes mais radicais da ciência ganharia contornos místicos, dando origem a livros que confundem física quântica com autoajuda.

Nascida na virada do século 19 para o 20, a física quântica surgiu para tapar lacunas da chamada física clássica, desenvolvida a partir de Isaac Newton, no século 17. Esta falhava em questões como a produção da luz elétrica ou a descrição da estrutura do átomo. Assim, foi sugerido que a energia existiria não de forma contínua (como onda), mas que poderia ser quantificada em unidades indivisíveis. Esta visão foi sendo desenvolvida por cientistas como Niels Bohr, Werner Heisenberg e Erwin Schroedinger e logo ficou claro que não seria só um remendo, mas viraria a física do avesso.
Escrevendo ainda durante o surgimento da nova área, Bridgman não só acertou ao prever que a teoria quântica seria distorcida, como também acertou várias das distorções.

No livro Pura Picaretagem (Ed. Leya), escrevo sobre os usos espúrios do tema junto com o físico Daniel Bezerra, para quem a física quântica se presta a distorções, entre outros motivos, por causa de “toda aquela celeuma, a partir dos anos 1930, com suas propriedades estranhas, dualidades e incertezas”, que dividiram até mesmo as opiniões de grandes cientistas. “E, talvez mais importante, porque nos anos 70 o pessoal começou a escrever aqueles livros comparando a física quântica com as filosofias orientais.”

Mas o que há de tão estranho na ideia de que a energia flui em unidades (os quanta), e não de modo contínuo? Por que isso dá origem a interpretações de caráter espiritual e místico? Veja a seguir por que implicações bizarras da física  quântica como a dualidade onda-partícula e o princípio da incerteza, entre outras, são interpretadas como autoajuda.

TUDO É ENERGIA


Nossos corpos emitem ondas que interagem com as de outros corpos?
tudo é energia (Foto: Indio San)
De acordo com a física quântica, a luz pode ser tanto como uma onda quanto como partículas em movimento, o que quer dizer que todos os objetos do mundo têm propriedades tanto de ondas, se espalhando pelo espaço como as ondas do mar pelo oceano, quanto de partículas, com um tamanho definido e uma posição clara. Isso é o chamado “princípio da dualidade”, uma das pedras fundamentais da física quântica.

Há quem diga que isso prova que “tudo está interligado”. Se o corpo de uma pessoa pode ser interpretado como uma onda que se propaga, o que o impede de interagir e interferir com as ondas de outras pessoas, das plantas, dos animais?

O problema com essa visão é que as ondas associadas a grandes objetos são muito concentradas. De acordo com o físico Kenneth W. Ford, um dos criadores da bomba H, o comprimento de onda (o “espalhamento quântico”) de uma pessoa de 70 quilos, andando a uma velocidade de 3 km/h, é da ordem de centésimos de septilionésimos — o número 1 precedido por 26 zeros — de nanômetros. Algo muitíssimo menor que o próprio corpo humano. Sua “propagação”, portanto, é menor que ele mesmo.

Como escreve Ford em seu livro 101 Quantum Questions (Harvard), “nós, humanos, gostemos ou não, somos habitantes do mundo clássico”.

TUDO É POSSÍVEL
Se um elétron pode atravessar uma parede, por que uma pessoa não pode?

Diferente das equações da física clássica, que permitem prever exatas posição e velocidade de um objeto, uma das equações básicas da física quântica (a função de onda de Schroedinger) só permite cálcular probabilidades.  A física clássica prevê onde uma nave a caminho de Marte estará a cada instante da viagem. Mas quando falamos do domínio quântico só conseguimos prever a chance de estar em certo lugar.

Isso nos dá uma limitação básica: não podemos saber o que irá acontecer com um átomo, apenas quais fenômenos têm chance de ocorrer.  Fora que quando cientistas calculam probabilidades, descobrem coisas que poderiam parecer impossíveis, como um elétron sumir de um lugar e aparecer em outro, ou passar por uma barreira. Isso leva certos gurus a proclamar que “tudo é possível”, e que o Universo é feito de “tendências”, não de “fatos”.

No entanto, quando as probabilidades quânticas são calculadas para os vastos aglomerados de partículas que compõem os objetos da escala clássica — um corpo humano, por exemplo, tem vários octilhões de átomos —, as probabilidades resultantes são as do mundo clássico: a chance de você conseguir passar através de uma parede pode não ser exatamente igual a zero, mas ainda é astronomicamente menor do que a de quebrar o nariz tentando.

A FORMA DA IMAGINAÇÃO


A realidade seria uma criação do cérebro humano?

a forma da imaginação (Foto: Indio San)
a forma da imaginação (Foto: Indio San)
A função de onda de Schroedinger só permite prever probabilidades ligadas à posição das partículas. Sempre que é realizada, pode localizar a partícula num dado lugar. Após várias medições, a distribuição destas localizações reproduz a proporção prevista nos cálculos de probabilidade. Observar, ou  transformar a probabilidade em resultado, chamada pelos físicos de colapso da função de onda, ainda é alvo de intensos debates no meio científico. Mas para o misticismo quântico não há mistério: é a consciência humana controlando o Universo, pois nosso olhar transformaria probabilidades em fatos e criaria a realidade. Para a física, no entanto, “observação” tem um sentido técnico — quer dizer interação. Assim, duas partículas inanimadas que interajam entre si estão observando-se e “criando realidade”, sem o envolvimento de nenhuma consciência, humana ou não.

PENSAMENTO POSITIVO
Não basta apenas olhar para o lado bom da vida

O princípio da incerteza diz que propriedades de pares de partículas não podem ser medidas com precisão: quanto mais certeza se tem sobre um dos elementos, mais incerteza se tem sobre o outro. Uma interpretação possível diz que, ao decidir qual propriedade medir com precisão, o cientista determina qual delas será “mais real”.

Para os gurus do pensamento positivo, isso confirma a sabedoria de olhar somente para o lado bom das coisas, já que ao fazer isso a pessoa está “determinando” o que é real. Mas o princípio se aplica a propriedades objetivas, não a conceitos abstratos como “bom” ou “mau”. E também depende da dualidade onda-partícula que, como vimos, é irrelevante na escala clássica de nossas vidas.

ESTRANHA SENSAÇÃO
Duas partículas que se sobrepõem podem justificar telepatia e premonições?

Emaranhamento é nome do fenômeno que ocorre quando duas partículas se encontram numa condição chamada de “sobreposição de estados”. Quando estão assim, qualquer alteração numa delas afeta, instantaneamente, a outra, não importando a distância entre elas.  Ele pode acontecer  até em escala macroscópica: em 2011, cientistas conseguiram emaranhar a vibração de duas lascas de diamante, separadas por 15 centímetros.

Em círculos esotéricos, o emaranhamento é invocado para justificar a telepatia e premonição. O problema é que os estados emaranhados requerem uma preparação muito cuidadosa e são muito frágeis. No caso do emaranhamento das lascas de diamante, o efeito durou apenas 0,35 picossegundo, ou menos de um trilionésimo de segundo. Muito pouco tempo para se transmitir um pensamento, ou atrair os bons fluidos do Universo.
 

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